Como é que me tornei guia turístico na Islândia? Foi devido a um desgosto amoroso.
Eu estava em Portugal completamente perdido, estava desesperado e, de certa forma, esse desespero é que me levou para a Islândia sem ter uma ideia concreta do que era a Islândia, sem nunca lá ter estado, e sem saber o que ia fazer. Eu simplesmente queria ir…
Eu aqui não tinha um plano de vida, os meus projetos profissionais estavam a falhar, o meu relacionamento tinha falhado…foi uma sequência de coisas que me deixou sem objetivos. Decidi ir para o sítio mais longe.
Quando cheguei à Islândia precisava de ganhar dinheiro, fui com ‘uma mão vazia e outra sem coisa nenhuma’, foi um bocado assim, e então, quando lá cheguei, o primeiro trabalho que arranjei (que nunca imaginei que fizesse, mas uma pessoa aprende) foi um trabalho nos barcos, nos estaleiros navais, a fazer aquilo que faz um ajudante de serralheiro, muito duro num clima muito agreste, mais do que frio, é agreste! De inverno, com vento, frio e chuva a trabalhar nos barcos, para mim foi muito duro! Entretanto, fui trabalhar para um restaurante como ajudante de cozinha. Estava dentro dum espaço, era melhor.
Depois vim a Portugal passar o natal e, quando regressei em janeiro, pensei: “Não quero ficar só por aqui, quero conhecer a Islândia real, quero conhecer mais!”. E então fui para Akureyri, que é no Norte, no círculo polar ártico. Em Akureyri fui à procura de trabalho ao centro de emprego e havia vaga para trabalhar na estância de esqui. Isso marcou o meu percurso na Islândia, trabalhei lá seis invernos e é nessa estância que começo a ter contacto com aquela Islândia real. Na montanha tu tens o verdadeiro tempo da Islândia, as mudanças muito rápidas, temperaturas negativas, tempestades de neve que vêm de um momento para o outro, e tu andas ao ar livre a ter que guardar tudo de um momento para o outro. Todas as pessoas trabalham e ali o trabalho físico é essencial. Não existiria a Islândia atual se não existisse trabalho físico, eles têm uma predisposição física totalmente diferente.
Isto só se entende quando andas numa tempestade de neve e depois da tempestade vais para dentro da sala tomar um café, num sítio quente, e estás totalmente desgastado, porque fisicamente é muito extenuante andar naquele tempo lá fora. Só que quando chegas extenuado fisicamente, chegas mentalmente com uma sensação de liberdade, saudável, de vida! Ao mesmo tempo que te desgasta, aquilo faz-te sentir vivo e é isso que é apaixonante na verdadeira Islândia, esta sensação de vida!
Então, eu apaixonei-me muito por isso e, ao mesmo tempo, como sempre gostei de criar projetos, contactei uma agência de viagens portuguesa a perguntar se queriam que eu organizasse viagens à Islândia.
O contacto com a natureza selvagem, indomável, não moldada pelo homem. Esta natureza é o maior potencial da ilha e é aquilo que me faz feliz, é como estar na montanha, e depois poder transmitir isso às pessoas que lá vão, as sensações que a natureza nos dá. O que gosto menos é a confusão nos sítios que eu conheci sem ninguém há dez anos, e que agora estão cheios de serviços. Eu gostava mais quando eram selvagens, sem cafés e sem lojas a vender lembranças e agora é pessoas, e mais pessoas, e mais pessoas… Sítios que agora têm estradas asfaltadas para reservas naturais, onde antes não podias sequer ir porque eram protegidas. A indústria turística é devoradora…
A minha ida para a Islândia, e este trabalho, mudou-me completamente. Ao estares numa cultura completamente diferente, tu vais aprender a relativizar. Aprendi que se tem de fazer tudo e que tudo é válido. Nós temos de saber fazer tudo. A própria natureza nos ensina isso. Esta ideia de que eu trabalho num escritório e não faço outras coisas, porque não são da minha atribuição, é ridícula na Islândia. Vês crianças a trabalhar a partir dos treze anos, e isso não é exploração, são as próprias crianças que querem porque faz parte da cultura. As mulheres fazem trabalho físico e não te deixam ajudar, porque não se aplica este cavalheirismo latino daqui, pois elas não o aceitam. Aprendi com a Islândia a relativizar e também aprendi, apesar da natureza, a não me deslumbrar, porque sabes que tudo tem coisas boas, mas que também tem coisas más e isto é válido para tudo na vida e para qualquer local onde estejas.
Uma coisa má lá é a dificuldade de transmissão de afetos. É uma coisa marcante e que dá que pensar. Não vês duas pessoas de mão dada na rua, um beijo, um abraço… há grande dificuldade em dar um abraço a alguém, ninguém abraça ninguém. Eu entendo que é preciso contextualizarmos, que esta noção de espaço, de individualidade, é muito importante e só assim foi possível sobreviver e construir o país, mas, embora entendendo no contexto do isolamento e da necessidade da sobrevivência, aquilo, na verdade, transmite-se um bocado e eu senti que estava também a ficar mais fechado, com mais dificuldade em fazer amizades.
Histórias, tenho várias. Lembro-me de uma viagem que fiz, como guia privado, com um grupo de oito pessoas, dois casais e quatro senhoras. Estávamos a passar o sul da Islândia e estava muito vento, ventos próximos dos cento e vinte quilómetros por hora, e, ao irmos para uma reserva natural, o vento e a chuva era tanto que parei a carrinha e ela abanava toda. Ninguém queria sair do carro, a não ser um senhor que já tinha os seus setenta anos, que queria ir lá fora para sentir a natureza e a mulher disse “Não vais, Manel, não vais lá fora!” mas ele teimou que queria, porque queria sentir. Então, o senhor saiu do carro e foi caminhando até próximo do precipício, porque aquilo são rochedos com mais de cem metros de altura, e quando se virou para tentar vir para o carro novamente, ficou contra o vento e não conseguia andar…cada passo que dava para a frente, dava dois para trás e então gerou-se um pânico dentro do carro, porque o vento arrastava-o cada vez mais para o precipício. Nesse momento, tentei acalmar primeiro as pessoas que estavam comigo dentro do carro e, ao mesmo tempo, dizer ao senhor com gestos para ele se deitar no chão, para não ser levado pelo vento e dar-me tempo para me aproximar dele. Como tinha lá uma corda, amarrei-a a mim e ao carro e cheguei até ele e trouxe-o nas minhas costas, protegido do vento. Quando cheguei ao carro, acho que nunca as senhoras me beijaram tanto! E claro que a partir daí o senhor teve de ouvir a esposa até ao final da viagem: “És sempre a mesma coisa”, “Nunca me obedeces…”
Para ser um excelente guia turístico, tem de se ser preparado em termos de conhecimento geral do país, ter uma noção daquilo que mais desperta a pessoas, saber, por exemplo, que contando lendas consegues captar logo as pessoas. Tem de se ter um misto de informação geral que se possa passar com uma parte sensorial e emotiva. Um misto de sensibilidade e informação. Porque as pessoas são compostas de emoções, as pessoas são afetos e se tu não conseguires lidar com afetos não adianta teres muita informação para dar. Se ouvirmos, tocarmos, um carinho, um abraço, é isso que a pessoas necessitam na vida… não é só na viagem…é na vida. Sem afeto eles desligam da informação. É o afeto que faz com que as pessoas te queiram ouvir.
O que acrescento à vida das pessoas? Beleza. Sem fantasia não existe vida, sem beleza não vale a pena viver. E é isso que a pessoas vão buscar à viagem, algo que faça a vida delas valer a pena, ter beleza, ter magia. Acredito que algumas pessoas se vão lembrar de mim, que eu tenha sido um contributo. Eu sou um veículo, se fizer um bom trabalho, posso fazer com a que a viagem seja um momento inesquecível na vida das pessoas.
Enquanto isto me trouxer beleza a mim também e enquanto as pessoas sentirem beleza nas viagens, faz sentido. É isso que me motiva.
Passados dez anos, a força da Islândia não me curou a ferida do desgosto amoroso. Trouxe-me uma série de belezas, e pode me ter ajudado também nesse caso, mas não posso dizer que curou, porque não posso colocar no exterior algo que tem de ser resolvido pelo interior.
Não é a ir embora que a gente resolve os problemas que tem dentro.
| Ivo |
Eu estava em Portugal completamente perdido, estava desesperado e, de certa forma, esse desespero é que me levou para a Islândia sem ter uma ideia concreta do que era a Islândia, sem nunca lá ter estado, e sem saber o que ia fazer. Eu simplesmente queria ir…
Eu aqui não tinha um plano de vida, os meus projetos profissionais estavam a falhar, o meu relacionamento tinha falhado…foi uma sequência de coisas que me deixou sem objetivos. Decidi ir para o sítio mais longe.
Quando cheguei à Islândia precisava de ganhar dinheiro, fui com ‘uma mão vazia e outra sem coisa nenhuma’, foi um bocado assim, e então, quando lá cheguei, o primeiro trabalho que arranjei (que nunca imaginei que fizesse, mas uma pessoa aprende) foi um trabalho nos barcos, nos estaleiros navais, a fazer aquilo que faz um ajudante de serralheiro, muito duro num clima muito agreste, mais do que frio, é agreste! De inverno, com vento, frio e chuva a trabalhar nos barcos, para mim foi muito duro! Entretanto, fui trabalhar para um restaurante como ajudante de cozinha. Estava dentro dum espaço, era melhor.
Depois vim a Portugal passar o natal e, quando regressei em janeiro, pensei: “Não quero ficar só por aqui, quero conhecer a Islândia real, quero conhecer mais!”. E então fui para Akureyri, que é no Norte, no círculo polar ártico. Em Akureyri fui à procura de trabalho ao centro de emprego e havia vaga para trabalhar na estância de esqui. Isso marcou o meu percurso na Islândia, trabalhei lá seis invernos e é nessa estância que começo a ter contacto com aquela Islândia real. Na montanha tu tens o verdadeiro tempo da Islândia, as mudanças muito rápidas, temperaturas negativas, tempestades de neve que vêm de um momento para o outro, e tu andas ao ar livre a ter que guardar tudo de um momento para o outro. Todas as pessoas trabalham e ali o trabalho físico é essencial. Não existiria a Islândia atual se não existisse trabalho físico, eles têm uma predisposição física totalmente diferente.
Isto só se entende quando andas numa tempestade de neve e depois da tempestade vais para dentro da sala tomar um café, num sítio quente, e estás totalmente desgastado, porque fisicamente é muito extenuante andar naquele tempo lá fora. Só que quando chegas extenuado fisicamente, chegas mentalmente com uma sensação de liberdade, saudável, de vida! Ao mesmo tempo que te desgasta, aquilo faz-te sentir vivo e é isso que é apaixonante na verdadeira Islândia, esta sensação de vida!
Então, eu apaixonei-me muito por isso e, ao mesmo tempo, como sempre gostei de criar projetos, contactei uma agência de viagens portuguesa a perguntar se queriam que eu organizasse viagens à Islândia.
O contacto com a natureza selvagem, indomável, não moldada pelo homem. Esta natureza é o maior potencial da ilha e é aquilo que me faz feliz, é como estar na montanha, e depois poder transmitir isso às pessoas que lá vão, as sensações que a natureza nos dá. O que gosto menos é a confusão nos sítios que eu conheci sem ninguém há dez anos, e que agora estão cheios de serviços. Eu gostava mais quando eram selvagens, sem cafés e sem lojas a vender lembranças e agora é pessoas, e mais pessoas, e mais pessoas… Sítios que agora têm estradas asfaltadas para reservas naturais, onde antes não podias sequer ir porque eram protegidas. A indústria turística é devoradora…
A minha ida para a Islândia, e este trabalho, mudou-me completamente. Ao estares numa cultura completamente diferente, tu vais aprender a relativizar. Aprendi que se tem de fazer tudo e que tudo é válido. Nós temos de saber fazer tudo. A própria natureza nos ensina isso. Esta ideia de que eu trabalho num escritório e não faço outras coisas, porque não são da minha atribuição, é ridícula na Islândia. Vês crianças a trabalhar a partir dos treze anos, e isso não é exploração, são as próprias crianças que querem porque faz parte da cultura. As mulheres fazem trabalho físico e não te deixam ajudar, porque não se aplica este cavalheirismo latino daqui, pois elas não o aceitam. Aprendi com a Islândia a relativizar e também aprendi, apesar da natureza, a não me deslumbrar, porque sabes que tudo tem coisas boas, mas que também tem coisas más e isto é válido para tudo na vida e para qualquer local onde estejas.
Uma coisa má lá é a dificuldade de transmissão de afetos. É uma coisa marcante e que dá que pensar. Não vês duas pessoas de mão dada na rua, um beijo, um abraço… há grande dificuldade em dar um abraço a alguém, ninguém abraça ninguém. Eu entendo que é preciso contextualizarmos, que esta noção de espaço, de individualidade, é muito importante e só assim foi possível sobreviver e construir o país, mas, embora entendendo no contexto do isolamento e da necessidade da sobrevivência, aquilo, na verdade, transmite-se um bocado e eu senti que estava também a ficar mais fechado, com mais dificuldade em fazer amizades.
Histórias, tenho várias. Lembro-me de uma viagem que fiz, como guia privado, com um grupo de oito pessoas, dois casais e quatro senhoras. Estávamos a passar o sul da Islândia e estava muito vento, ventos próximos dos cento e vinte quilómetros por hora, e, ao irmos para uma reserva natural, o vento e a chuva era tanto que parei a carrinha e ela abanava toda. Ninguém queria sair do carro, a não ser um senhor que já tinha os seus setenta anos, que queria ir lá fora para sentir a natureza e a mulher disse “Não vais, Manel, não vais lá fora!” mas ele teimou que queria, porque queria sentir. Então, o senhor saiu do carro e foi caminhando até próximo do precipício, porque aquilo são rochedos com mais de cem metros de altura, e quando se virou para tentar vir para o carro novamente, ficou contra o vento e não conseguia andar…cada passo que dava para a frente, dava dois para trás e então gerou-se um pânico dentro do carro, porque o vento arrastava-o cada vez mais para o precipício. Nesse momento, tentei acalmar primeiro as pessoas que estavam comigo dentro do carro e, ao mesmo tempo, dizer ao senhor com gestos para ele se deitar no chão, para não ser levado pelo vento e dar-me tempo para me aproximar dele. Como tinha lá uma corda, amarrei-a a mim e ao carro e cheguei até ele e trouxe-o nas minhas costas, protegido do vento. Quando cheguei ao carro, acho que nunca as senhoras me beijaram tanto! E claro que a partir daí o senhor teve de ouvir a esposa até ao final da viagem: “És sempre a mesma coisa”, “Nunca me obedeces…”
Para ser um excelente guia turístico, tem de se ser preparado em termos de conhecimento geral do país, ter uma noção daquilo que mais desperta a pessoas, saber, por exemplo, que contando lendas consegues captar logo as pessoas. Tem de se ter um misto de informação geral que se possa passar com uma parte sensorial e emotiva. Um misto de sensibilidade e informação. Porque as pessoas são compostas de emoções, as pessoas são afetos e se tu não conseguires lidar com afetos não adianta teres muita informação para dar. Se ouvirmos, tocarmos, um carinho, um abraço, é isso que a pessoas necessitam na vida… não é só na viagem…é na vida. Sem afeto eles desligam da informação. É o afeto que faz com que as pessoas te queiram ouvir.
O que acrescento à vida das pessoas? Beleza. Sem fantasia não existe vida, sem beleza não vale a pena viver. E é isso que a pessoas vão buscar à viagem, algo que faça a vida delas valer a pena, ter beleza, ter magia. Acredito que algumas pessoas se vão lembrar de mim, que eu tenha sido um contributo. Eu sou um veículo, se fizer um bom trabalho, posso fazer com a que a viagem seja um momento inesquecível na vida das pessoas.
Enquanto isto me trouxer beleza a mim também e enquanto as pessoas sentirem beleza nas viagens, faz sentido. É isso que me motiva.
Passados dez anos, a força da Islândia não me curou a ferida do desgosto amoroso. Trouxe-me uma série de belezas, e pode me ter ajudado também nesse caso, mas não posso dizer que curou, porque não posso colocar no exterior algo que tem de ser resolvido pelo interior.
Não é a ir embora que a gente resolve os problemas que tem dentro.
| Ivo |
Sobre o Projeto:
Qual é a história da pessoa que conhecemos a fazer o seu trabalho? O que é que a faz feliz na sua função? E infeliz? De que forma aquilo que faz influencia a pessoa que é? Como é que ela pensa que o seu trabalho ajuda os outros a ter uma vida melhor? O que é que a motiva a continuar todos os dias? Num mundo em que cada vez mais se exigem resultados, e a energia escasseia para ver verdadeiramente o outro, este é um projeto fotográfico e de storytelling sobre a face humana do trabalho.
Com a fotografia tento captar a 'essência' da pessoa, a sua individualidade, a sua verdade, e por isso evito que se esconda atrás do seu sorriso, se este não for natural. Gosto de a fotografar no seu contexto profissional para que possamos ver o "humano no trabalho", utilizo apenas a luz que existe nesse local e, por último, optei pelo preto e branco para que a cor não seja uma distração ao essencial: para que as marcas da vida, as rugas, a emoção no olhar e as formas do rosto e do contexto fiquem mais evidentes e intensas.
Aqui interessa-me a recolha da história simples e sintética da pessoa na sua relação com o trabalho, como este o transforma enquanto ser humano, e de que forma ajuda os outros. Escrevo as palavras tal e qual como me são ditas para não contaminar a verdade do entrevistado com correções e com as minhas interpretações.
| Vítor Briga |