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8 de março de 2021

'Sozinha não é a mesma coisa.'



Sou pianista acompanhadora há onze anos. O que faz um pianista acompanhador? Acompanha os outros instrumentos que têm alguma peça para tocar com piano. Na escola, acompanho os alunos nas aulas, nas provas, nos concertos. Nas aulas, quando o aluno tem uma peça com piano e a peça está lida e preparada para juntar com o piano, faço esse trabalho com o aluno, às vezes junto com o professor para depois apresentar numa audição e, no final do ano letivo, apresentar a prova.

O piano é um instrumento bastante versátil, no sentido em que é um instrumento harmónico. Um violino, por exemplo, é um instrumento melódico, não tem harmonia e precisa do apoio do piano para fazer essa parte.

Por acaso, até nem gosto muito do nome pianista acompanhador porque acaba por dar a sensação de que é uma coisa secundária. Se fizer um concerto com um violinista, eu não sou pianista acompanhadora naquele concerto, estou a fazer música de câmara (música em conjunto) com aquele violinista, e somos dois profissionais. Aqui, eu acho que se deu essa designação por estar inserido numa escola.

Muitas vezes, sinto nas aulas que sou uma espécie de professora secundária, encaram-nos muitas vezes como uma “aparelhagem”: vou lá, sento-me e carregam no play e toco com o aluno. Muitas vezes não há respeito pelo pianista acompanhador, pelo pianista que está ali a fazer um trabalho também muito importante com o aluno, porque o aluno não teria a peça completa se não tivesse o pianista.

Porque é que não colocam uma reprodução áudio em vez de nos contratarem? Há alguns que tentam fazer isso. Por exemplo, para os alunos pequeninos, existem manuais que trazem um CD com o acompanhamento do piano. Só que o CD, ao colocares numa aparelhagem, não deixas de ter uma máquina, aquilo está ali, não mexe, e um pianista acompanhador muitas vezes mexe-se e vai com o aluno. Ou seja, a gravação só dá aquele tempo para tocar, aquela pulsação, e o aluno tem de se adaptar a essa pulsação, enquanto o pianista acompanhador faz ao contrário, adapta-se e vai com o aluno. Há alunos que tocam mais rápido, outros mais devagar, há alunos que precisam de tempo para chegar a um determinado andamento. A música não é uma máquina. Nós muitas vezes ajudamos o aluno a respirar, acaba por tudo fazer parte da música que tem de ser trabalhada em conjunto e as gravações não permitem isso. Se eu vejo que um aluno está aflito com uma passagem difícil, complexa, que é muito rápida, eu posso ajudar e puxar o andamento para trás para ser mais fácil para ele, por exemplo. Supostamente o trabalho do pianista acompanhador é ir com o aluno: se ele corre, eu tenho de correr também com ele, mas também posso ajudá-lo a travar para que ele não corra, e isso uma gravação não faz.

O que me faz feliz neste trabalho? Muita coisa! Principalmente é o tocar, é o poder levantar-me de manhã e sentar-me ao piano e saber que vou estudar piano. Isso acho que é das coisas que me faz mais feliz. E depois também o trabalho que faço com os miúdos, vejo o progresso que eles acabam por fazer e que, em certa parte, também tem a ver com o trabalho que faço com eles, quer seja com o professor na aula, quer seja fora, com ensaios que faço individualmente com eles, pois muitas vezes o tempo de uma aula não chega. E esse trabalho também é muito importante, estamos ali os dois sem a “interferência” técnica do professor (eu não percebo de violino ou de trompa, não percebo, eu percebo de música) e aí às vezes consigo desbloquear certos bloqueios indo pelo trabalho musical que faço com o aluno, e isso é gratificante.

O que gosto menos é a pressão que o trabalho tem em provas, concertos... Às vezes temos de preparar obras ou peças num curto espaço de tempo, temos de desenrascar muitas vezes. É difícil estar bem preparado porque são muitos alunos, é muito repertório para preparar, para estudar.

Por exemplo, quando temos mais de quarenta alunos para acompanhar… eu não tenho um metrónomo dentro de mim... há alunos que tocam a mesma peça em diferentes andamentos e eu não me lembro de todos, é normal. Mas às vezes também pode criar situações desconfortáveis de o aluno começar e eu não começar, ou de eu começar e o aluno não entra..., mas também faz parte nós sabermos lidar com essas situações.

Claro que à medida que vamos tendo mais experiência, vamos tendo mais "repertório em dedos" e vamos melhorando. Mas, essa pressão é a parte de que gosto menos. E também, às vezes, de lidar com alguns feitios de colegas que são mais resistentes a ouvir outras opiniões, ou a estarem abertos, ou a, principalmente, respeitarem o pianista acompanhador. Nós estamos ali, somos um colega, somos também professores e podemos contribuir para o progresso do aluno. Alguns professores ouvem-nos e até perguntam, mas outros não, são aqueles que acham que nós somos a “aparelhagem”.

Se não fosse pianista acompanhadora, e se não me tivesse dedicado à música provavelmente estaria ligada ao desporto porque foi a minha dúvida: tive de decidir entre música e desporto. A música e o desporto têm muita coisa a ver, acho eu, porque um pianista acaba por ser um atleta, e na perspetiva profissional, um atleta de alta competição: temos de estudar horas e temos de estar em forma para conseguir tocar sempre e depois há o momento da performance.

Como é que ser pianista influenciou a pessoa que eu sou? Se calhar, a música acaba por me ajudar a combater a solidão. Eu vim de Oliveira de Azeméis para o Porto, com quinze anos, estudar música e acabava por estar muito tempo sozinha. O estudo do piano é muito solitário. E a música ajudou-me, e ainda hoje ajuda, acho eu, a combater a solidão. Para estudar música, preciso de estar sozinha, mas ao mesmo tempo a música faz-me companhia, estou eu e o piano.

Para ser uma excelente pianista acompanhadora é preciso, principalmente, não querer mostrar-se. Porque é um trabalho de equipa que temos de fazer com o aluno e conseguir que ele mostre todo o seu potencial. O ideal é que consigamos que o aluno brilhe, independentemente de ser talentoso, de ser bom, de ser mau, mas que ali ele brilhe de alguma forma.

Não é eu ser invisível, é eu não me querer impor para que façamos um trabalho de música de câmara. Não estou ao serviço do aluno, estou com ele. Também não me devo apagar porque o aluno tem de perceber que tem ali outra pessoa, porque está. Ele também deve perceber que tem de ouvir a outra pessoa, que tem de estar com a outra pessoa, que tem de respirar com quem está a tocar com ele, seja um piano, seja outro instrumento.

O conselho que dou a quem quiser fazer bem este trabalho, é tocar com outras pessoas, o máximo de pessoas possível e o máximo de instrumentos variados, duos, trios, quartetos, por aí fora. Isso é uma coisa que falha no nosso curso. Por exemplo, um violinista acaba por ter mais esse traquejo, tocam muito em conjunto, em orquestras e com outros instrumentos por serem um instrumento melódico precisam de outro suporte, tocam muito com outras pessoas. Nós pianistas não, nós fazemos sempre um trabalho mais isolado. O trabalho com outras pessoas, mais em equipa, faz muita falta. O conselho que dou é que se habituem a tocar com colegas, com amigos, enquanto estudantes, para saberem estar com o outro.

O piano é muito individualista. Nós, só por si, fazemos tudo, somos um instrumento melódico e harmónico. Aprender a ouvir quem está a tocar connosco, é importante, porque, às vezes, estamos tão embrenhados na nossa "coisa", nas nossas dificuldades técnicas (que toda a gente tem), que se torna difícil para o pianista ouvir o outro.

O que é acrescento à vida dos outros? Sei lá…se não existisse a minha profissão faltava o piano para tocar com os alunos, talvez o lado humano e de cumplicidade que também criamos com quem tocamos. Não sei o que possa acrescentar mais…

O que me mantém motivada? Fazer música! Eu gosto muito de fazer música… e com outras pessoas dá-me um gosto especial. Sozinha não é a mesma coisa.

| Maria João |

Sobre o Projeto:

Qual é a história da pessoa que conhecemos a fazer o seu trabalho? O que é que a faz feliz na sua função? E infeliz? De que forma aquilo que faz influencia a pessoa que é? Como é que ela pensa que o seu trabalho ajuda os outros a ter uma vida melhor? O que é que a motiva a continuar todos os dias? Num mundo em que cada vez mais se exigem resultados, e a energia escasseia para ver verdadeiramente o outro, este é um projeto fotográfico e de storytelling sobre a face humana do trabalho.

Com a fotografia tento captar a 'essência' da pessoa, a sua individualidade, a sua verdade, e por isso evito que se esconda atrás do seu sorriso, se este não for natural. Gosto de a fotografar no seu contexto profissional para que possamos ver o "humano no trabalho", utilizo apenas a luz que existe nesse local e, por último, optei pelo preto e branco para que a cor não seja uma distração ao essencial: para que as marcas da vida, as rugas, a emoção no olhar e as formas do rosto e do contexto fiquem mais evidentes e intensas.

Aqui interessa-me a recolha da história simples e sintética da pessoa na sua relação com o trabalho, como este o transforma enquanto ser humano, e de que forma ajuda os outros. Escrevo as palavras tal e qual como me são ditas para não contaminar a verdade do entrevistado com correções e com as minhas interpretações.

| Vítor Briga |

 

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Vítor Briga
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